Poema Religioso Cristão

Vianney Mesquita, membro titular da Academia Cearense da Língua Portuguesa, Cadeira 37 

Factum est autem in diebus illis exiit edictum a Caesare Augusto, ut describeretur universus orbis.
(E aconteceu naqueles dias que foi emitido um decreto por Cesar Augusto, para que fosse anunciado a todo o Mundo)

O arauto do Imperador/O pergaminho descerra, /Com o fim de anunciar/A ordem que o edito encerra, /Mandando recensear/Os habitantes da Terra.[Naqueles dias saiu um edito por parte de Cesar Augusto, para ser recenseada toda a Terra].

De muito recenseamento/Foi Augusto ordenador. /E do Lácio império imenso, /Sendo da Síria o gestor,/Quirino geriu o censo/Como seu governador.
[Este recenseamento foi o primeiro que se fez, sendo Quirino Governador da Síria].

Era costume do povo/Apresentar-se à contagem/Cada qual em sua cidade, Sem problema de estalagem, /Com pouca dificuldade, / Evitando-se viagem.[E iam todos recensear-se, cada qual à sua própria cidade].

Nessa, a primeira estatística, / Com José foi diferente:/ Tinha que, de Nazaré – / Pois de David procedente – / Ir até Belém, que é /Onde o Rei se faz semente.
[Ora, José subiu também da Galileia, de Nazaré, até a Judeia, a cidade de David chamada Belém, por ser da casa e linhagem de David…]

Sendo cepa de David, / José empregou a ideia/ De, com a esposa Maria,/Ir a Belém da Judeia,/ Onde se recensearia/ Cidadão da Galileia.
[…a fim de recensear-se com Maria, sua esposa, que se achava grávida].

Nessa vilegiatura, / Em dias de descansar,/ Quando em Belém se encontrava/ E estando o prazo a findar,/ Eis que a Virgem delivrava,/ Vendo o Pequeno aflorar.
[E quando eles ali se encontravam, completaram-se os dias de Ela dar à luz, e teve o seu Filho primogênito,…]

Envolveu o Nato em pano/ E não achando hospedagem, / Recostou-se à manjedoura, / De animais a albergagem/ Que a Humanidade entesoura/ Em tão ditosa passagem.
[…que envolveu em panos e recostou numa manjedoura, por não haver para eles lugar na hospedaria].

Havia na região/ Alguns apascentadores, / Os quais no chão pernoitavam, / Como é mister dos pastores,/ Que depois se transformavam/ Em fiéis adoradores.
[Na mesma região, havia uns pastores, que pernoitavam nos campos e faziam a guarda noturna do seu rebanho].

Porque o Anjo do Senhor, / Juntamente à sua glória, / Cercou-os de muita luz,/ Diz São Lucas na História/ Da Bíblia, que nos conduz/ E não nos sai da memória.
[Apareceu-lhes então o Anjo do Senhor e a glória do Senhor cercou-os de luz, …]

Temerosos de início, / Mas a seguir se acalmaram. / Disse o Anjo: – não temais – / E, atentos, escutaram/ Uma narração veraz/ Que nunca mais deslembraram.
[…e eles tiveram muito medo. Disse-lhes o Anjo: Não temais, pois vos anuncio uma grande alegria para todo o povo:]

Falou ele: – nasceu hoje/ O Messias, Salvador, / Em Belém lá na Judeia, / Dos homens o Redentor, / Cuja obra giganteia/ Enche a Terra de louvor.[Nasceu-vos hoje na cidade de David um Salvador que é o Messias Senhor!]

Servir-vos-á de sinal/ Um sucesso inusitado:/ Em panos encontrareis/ Um Menino circundado, / A quem vós adorareis, / Pois traz o Verbo Encarnado.[Isto vos servirá de sinal: encontrareis o Menino envolto em panos e deitado numa manjedoura.]

Louvando a Deus, num repente, / Os contingentes sagrados, / Anjos como iluminuras,/ Em telas ricas ornados,/ Deram glórias nas alturas/ E paz aos homens amados.
[De súbito, juntou-se ao Anjo uma multidão do exército celeste, louvando a Deus e dizendo: Glória a Deus nas alturas e paz na Terra entre os homens do seu agrado.]

Após esse Nascimento, / Mudou o placard da partida, / Transformou-se o coração,/ Transmudou-se a nossa lida,/ Que agora tem por missão/ As glórias da outra vida.
[Não há nada nesta estrofe, a não ser ilações lógicas de qualquer crente acerca do nascimento, vida, paixão e morte de Jesus Cristo, que esteja explícito na Sagrada Escritura.]

NOTAS (Prof. MARCELO BRAGA)
Extraído de … E o Verbo se Fez Carne – textos bíblicos em versos (Sobral: Edições UVA, 2004), com Nihil Obstat de Dom José Antônio Aparecido Tosi Marques, arcebispo metropolitano de Fortaleza, datado de 27 de setembro de 2003.

Os escritos em corpo menor abaixo das estrofes representam a letra exata do Evangelho de São Lucas, de 2, 1-14, que o poeta transferiu com fidelidade verbal para a grade métrica das sextilhas com versos de sete sílabas – seis estrofes isossilábicas e heterorrítmicas no sistema de rimas ABCBCB.

DOCE ENGANO

 

O doce engano

                        “Em cada coração há uma janela para outros corações”. (Rmi)

                                                          

Na vila dos Corações Feridos, Márcia recebeu um telefonema de sua amiga Mônica e, depois de conversarem por horas, resolveu escrever-lhe uma cartinha. O rapaz do correio não a entregou, porém, no endereço indicado. Na casa de Rita, uma moça desesperançada que vivia pelos cantos, deprimida, Hilda, sua mãe, já tinha perdido a fé de vê-la feliz. Naquela tarde, no entanto, havia algo novo: sentada na varanda, estupefata, Rita abriu o envelope curiosa e começou a ler uma carta.

Amiga Mônica, abre tuas janelas…  São muitas!

A esperança nos remete ao devir. Aquele que deixa sua alma fluir e vislumbra o amanhã, percorre um trajeto instigante. Entretanto só o presente existe no tempo do agora. É o Ser sendo. Lembre-se do que é viver. Existência provisória e essência eterna. Finito e infinito no instante. O fogo divino (a autora).

 

Ouvi atentamente o que disseste das tuas amarguras e indisciplina, de uma ausência de ideações, de um repleto vazio e de cortinas cerradas. A sombra assentava em teu ambiente. Teu telefone pranteava.

Cara amiga, olha pela janela do quarto, observa a noite chegando e o dia nascendo, as idas e vindas da natureza, a harmonia! Ambos, dia e noite, entrelaçam-se na mágica do tempo, no ciclo da vida.

Sabe, uma vez abri as janelas do passado e avistei muitas lembranças, tanto boas quanto tristes. Fechei-as depois. Então, fiquei a pensar quais janelas queria abrir, mas percebi o engano, a ilusão. Eu queria mesmo era abrir as janelas da casa na praia e olhar o mar, os coqueiros. Eu amava escutar a melodia dos ventos e o rumor das ondas derramando-se em choro prateado.

Tem mais, minha amiga: onde moras, no casarão do sítio, as janelas de madeira envelhecida, quando abertas, de um lado, mostram um belo pomar; de outro, a horta da tua tia Vânia. Das de trás, vês o quintal cheio de jarros de plantas medicinais e as galinhas carcarejando. Tens a vista da planície verdejante e da pedra do Velho Tonho, em que ele dormitava e comia milho verde. Lembras-te? Ele ainda mora por aí? Dá notícias!

Porém alcançar o novo, o inusitado, a mudança; deixar-se surpreender exige que te abras às possibilidades e te convertas em conchas plasmando-te no inteligível. Se queres tocar tua alma, tenta… insiste…retira os entulhos do caminho, a areia dos olhos. Quem sabe não poderás ver a face do mistério, outras realidades, as imateriais subjacentes ao cosmo, que transcendem o mundo concreto, penetram na essência do nosso Ser?! São as que abrem para dentro, deixando a luz interior aclarar os cantos e recantos, onde o coração dança e repousa. São reveladoras!

Ao abrir essas janelas, tenta escutar a ti mesma, aos teus silêncios, à tua voz interior, aos teus sons ocultos. Já dizia Cecília, “Faze silêncio no teu corpo. E escuta-te. Há urna verdade silenciosa dentro de ti. A verdade sem palavras”.  Busca, pois, penetrar na fresta da janela, onde a lucidez margeia a alma plena do amor, conjugando o verbo esperançar.

Não estás só! Somos vários e somos UM. Sente o calor da humanidade, a metafísica do poema mítico, a sinfonia da natureza, consolidados nas ideias sublimes. Elas nos elevam e acendem as estrelas no cosmo inefável.

Olha ainda para além das janelas, num percurso aos céus, e conseguirás, com tua vontade, enxergar um caminho de fulgor extasiante. Podes tentar! Quem sabe?! Cruz e Sousa, em sua poesia, expressa que “A dor transcendentaliza”.

Amiga! Tua consciência se firma no entendimento de ti. O todo está em nós. Busca a sabedoria com inteira gratidão em todas as coisas!

Eu fiz um percurso assim, e é inexplicável!

Eu estou aqui, à espera da tua palavra! Liga se puderes.

Beijos.

Márcia

Terminada a leitura, o riso alarga-se no rosto de Rita. Conhecidas as duas mulheres, seu corpo eleva-se, e, olhando para sua casa, observa o quanto é um cinza, um “cinza das horas”! Então abre as janelas, deixando a luz entrar.

Nesse mágico instante, da varanda, a moça percebe, na vila de casas, grades nas janelas, olhos embaçados de velhinhas sentadas em cadeiras de pequenos terraços. O açude se rompe, os olhos se encharcam na barca-vida, na consciência do eu! E ela abarca a vida, dá-se conta do belo, da musicalidade dos ventos cantantes no fim da tarde.

Respira e mantém a calma!   Segura o telefone.

 

 

 

 

 

 

 

AFOGO

Nos tormentos rugosos, as lágrimas afligidas
Na caverna secreta, os ocultos aferros agudos
No traiçoeiro labirinto, o incômodo do instante
O chão árido, fere sem dó os pés caminhantes

Assim vê a noite fosca, alga umbrosa e fria
O percurso abre vias e desvios sem contorno

Opaca, sombria e sem o luzeiro, um guia

No inestético solo, caminho cruel e soturno

Aguarda o termo da erupção do vulcão interior
da lava que queima o recôndito da alma sofrida
dos pensamentos que afligem tal matéria doída
Nutre de esperança a infinda fé nascida da dor

Regina Barros Leal

O Poeta

No verbo, flui o singular eu lírico

Na trilha, a inacabável busca de si

No verso, a eterna verdade da vida

No rosto, a suave lágrima vertida

O poeta vê o finito e o infinito contínuo

Sente alegria, no indizível som divinal

Na mística, os afáveis símbolos eternos

Na essência, a busca da alma imortal

O poeta verseja a fé e segue o seu coração

Chora a partida na triste e inefável canção

Acende o fogo divino, pleno de esplendor

Irradia a esperança no belo verso de amor

Regina Barros leal

Soneto encadeado

compor um poema

Vianney Mesquita, membro titular da Academia Cearense da Língua Portuguesa, Cadeira 37

Soneto Encadeado

PSEUDOCONHECIMENTO

                                           Vianney Mesquita*

A Ciência não passa do bom senso exercitado e organizado.

                                                                             (Thomas Huxley).

RESUMO

Demanda facilitar a leitura do poema expresso no final do texto, recorrendo ao conhecimento geral obtido em estabelecimentos formais de ensino médio e universitário lato e stricto sensu, sem nomear nenhum autor, por desnecessário. Indicam-se as diversas escalas do saber, com suporte, principalmente, nas lições do filósofo das ciências Karl Raimund Popper, ao se reportar à ideia de Platão, conformada na Teoria dos Mundos.

Palavras-chave: Saber popular. Conhecimento Científico. Três Mundos, de Popper.  

ABSTRACT

It seeks to facilitate the reading of the poem below, resorting to general knowledge obtained in formal high school and university lato and stricto sensu establishments, without particularizing any author, for being unnecessary. Several scales of knowledge are indicated, with support, mainly, in the lessons of the philosopher of science Karl Raimund Popper, when referring to Platos’s Theory of Worlds.

Kew words: Know Popular. Scientific Knowledge. Three Worlds by K. R. Popper.

1 Senso Comum

      No tentame de facilitar a leitura e a decodificação do poema-título desses comentários, procedemos a lábeis interpretações atinentes aos diversos saberes, com suporte no nosso semiaparelhamento didático-histórico, haurido em estudos acadêmicos formais, em sala de aula e leituras plurais de domínio público, de sorte que, para esta escrita, não nos louvamos em quaisquer peças autorais a que legalmente devamos referência.

      Aparentemente, talvez, resulte sobejo exprimir, para audiências tão bem aparelhadas como soem ser nossos leitores – porém não perfaz nenhum ato transgressor – o fato de que o senso comum ou communis opinio significa a maneira de se entender as coisas, denotando ideações comumente acatadas pelo maior contingente de pessoas.

      O modelo retrata o conhecimento granjeado pelo ser humano, com amparo em observações do seu ambiente em todos os tempos. O senso geral – assim também divisado – assinala-se por conhecimentos rotineiros (empíricos) durante a vida inteira de uma pessoa, que, a seu turno, transmite essas ideias, recebidas de seus antecessores, aos próprios sucessores, de geração em geração, as quais comunicam à sua descendência e, deste modo, sucessivamente.

Dito saber (componente do Mundo 1, pressentido pelo filósofo da Ciência, o austríaco Karl Raimund Popper, com suporte na Teoria dos Mundos, de Platão) não está assentado em metodologias nem inferências oriundas da ciência – o chamado saber ordenado – mas é adquirido na assimilação de informações e saberes procedentes da vida cotidiana, sendo, entretanto, fonte de procura da ciência, presidida pelo método.

2 O Senso Crítico

      Convém adiantar, por ensejado, a noção de que o senso comum difere daquele de teor crítico, este assentado no pensamento reflexivo e na demanda de caráter científico por parte dos pesquisadores.

      Como manancial para a ciência, a qual, também, normalmente, não é definitiva na maioria dos seus sub-ramos, o saber geral o é apenas por enquanto, nunc enim, passível de ser desacreditado pela intervenção de um fato novo advindo das investigações procedidas pelo ordenamento epistemológico, eo ipso, transitadas pela metodologia no âmbito dos ditames da Filosofia das Ciências, da Epistemologia.

      Feito reflexão acerca do real latente (Mundo 1)então, o saber comum é transferível para o estádio do Mundo 2 popperiano, pois, nesse patim, já experimenta curso a concepção de um juízo, a conceição de um discernimento dotado de circunstâncias históricas.

      A communis opinio resulta, pois, assistemática, porquanto despossuída de organização prévia, sem amparo em postulados, teorias, leis e outros segmentos de procura científica lógicos, congruentes, sem conservar ligações comunicativas. Estas circunstâncias, de que o senso comum é órfão, pertencem, por conseguinte, ao conhecimento sistemático (já postado no Mundo 2 popperiano), constituinte de base da ciência. Esta, por sua vez, possui (ou não) comprovados, por via de uma conjunção de experimentos e exames sob metodologias, seus sistemas (ou teorias), proposições e suposições prováveis – estas, as hipóteses.

3 O Estatuto de Ciência

      Quando, então, o resultado de um pensamento ou da indústria etnológica de cada um assume configuração de peça socializada, tecida em mensagem massivamente propagada, passa a ter existência própria, como um produto objetivo e excogitado pelo próprio ensaísta-pesquisador, sujeito, portanto, a uma análise crítica, porém, passível de defeitos, suscetível, por conseguinte, de revisões, adendos, consertos e aperfeiçoamentos, recriações, enfim, a ciência, sujeita a esses percalços; bem menos o são, todavia, as ditas exatas, como, verbi gratia, os conhecimentos matemáticos. São as chamadas Coisas Imperfeitas, as quais habitam já o Mundo 3 de Karl Raimund Popper.

4 A Teoria dos Três Mundos 

(exageradamente sucinta)

Karl Raimund Popper, austríaco e naturalizado inglês (Viena, 28.07.1902 – Kenley – UK, 17.09.1974), desenvolveu esse sistema, na esteira da ideação platoniana da Teoria dos Mundos, com o escopo de esclarecer a relação corpo-mente. Então, neste passo, sem dever se examinar com profundidade os meandros desse sistema – e até pelo fato de a expressa teoria não haver logrado fazer com que se entenda na totalidade esse vínculo – resulta a ideia de que o Mundo 1 é o locus das ocorrências físicas, das substâncias, dos campos e do que há de material no Globo, onde residem, também, os entendimentos do senso comum ou a mais de uma vez aqui referida communis opinio.

      Na sequência do Mundo 2, descansam as ocorrências reflexivas, as práticas conscientes, subordinadas aos cinco sentidos (visão, audição, tato, olfato e gosto). Aí está, principalmente, a cabeça, o cérebro, afirmando-se toda a consciência, evidentemente, humana, onde se aloca, para o objetivo dessas linhas, o conhecimento sistemático, por assim exprimir, o prelúdio do saber de ciência, a “pré-ciência”. Vem o terceiro estádio, configurado no Mundo 3, das criações objetivas do cérebro, incluindo os feitos estáveis das realizações do ser humano, como depuração dos dois mundos anteriores. Aqui se dispõe a atividade de procura e descoberta dos fatos científicos – o Universo Popperiano Três.

      Com este apressado, incompleto e talvez desasado comentário, tenta-se facilitar ao leitor a decodificação do soneto à frente, com rimas encadeadas – o que concede mais estesia aos pés consoados – o qual constitui um dos recheios de produtos da mente, como expressão linguística aposta no derradeiro estádio da (mal) escoliada teoria de Popper.

PSEUDOCONHECIMENTO

Fantasias, mentiras sob lógicas,
Isagógicas sobre as audiências
Pseudociências fenomenológicas,
Morfológicas desobediências.

Conheceres fingidos das potências,
Carências antropossociológicas,
Filológicas falsas congruências,
São coerências amplamente alógicas.

A tal grade, v.g., estão avessos
Os adereços da Ciência Exata,
O cimo, a nata do saber mundano.

E, neste plano, saltam os endereços,
Sem desapreço nem quaestio (vexata),
N’ata do Mundo 3 popperiano.

HOMENAGEM AOS ACADÊMICOS FALECIDOS NO BIÊNIO 2020/2021

Ítalo Gurgel, membro titular da Academia Cearense da Língua Portuguesa, Cadeira 17

Instituição centenária, afeita aos rituais e paramentos, a Academia sempre alimentou o mito da imortalidade, atribuindo a seus membros esse dom divino. Quando Machado de Assis fundou a Academia Brasileira de Letras, em 1897, o lema adotado foi ad imortalitatem. Mera cópia, em tradução latina, do que o cardeal Richelieu mantou gravar, em 1635, no selo oficial da Academia Francesa: à l’immortalité.

Para o bem de todos, porém, a supracitada imortalidade bafeja apenas a instituição, não aqueles que nela tomam assento. Imortal não é o homem, mas sua obra. Morre o homem, fica a fama, como propunha o inesquecível Ataulfo Alves. Assim, cabe a nós cultuar a lembrança e reconhecer os méritos daqueles que se foram, compreendendo e acatando, ao mesmo tempo, o inevitável desfecho que aguarda todo ser humano. A Academia, neste caso, se presta como locus da reverência. Por sua solidez como instituição pétrea, isenta, que atravessa os tempos, e pela credibilidade que costuma amealhar, é nela que o pedestal da memória repousa com mais firmeza.

Daí se estabelecer, muito espontaneamente, nos chamados “sodalícios”, a prática da relembrança. Evocar a memória dos que nos precederam é tarefa que abraçamos com respeito e gratidão, por entendermos que é nesses momentos que se forjam os elos da verdadeira eternidade. A Academia, afinal, se constrói como uma grande corrente que enlaça virtudes, idiossincrasias, talentos reunidos naquilo que é talvez sua marca mais notável e que encontra sua síntese na palavra “convívio”.

Quero aqui, companheiras e companheiros, reforçar a têmpera de três elos dessa ditosa cadeia que compomos, reportando-me ao brilho que vieram agregar a esta casa, em vida e depois dela. Refiro-me a Paulo Bonavides, Luiz Geraldo de Miranda Leão e Mário Barbosa Cordeiro, três personalidades distintas, três nomes queridos e respeitados em nosso meio, que, no biênio de 2020 a 2021, nos fizeram provar, em tragos amargos, a experiência da orfandade intelectual.

Agradeço ao presidente Marcelo Braga a honra que me ofereceu de homenagear, em nome de todos, os três queridos confrades, no momento em que a Academia celebra mais um ano de sua história, ano difícil, em que se colocou à prova nossa força, nossa resiliência, nossa capacidade de sobreviver em meio a uma tragédia nacional e universal.

No espaço de tempo que se faz razoável em evento desta natureza, não haveria como traduzir, em profuso e profundo panegírico, as virtudes todas dos companheiros que partiram. Assim, peço que me aceitem parcimonioso em meus comentários, pois me impus o exercício da síntese, ainda que atento ao propósito de traduzir com fidelidade o nosso luto e saudade.

Todos eles integraram aquela caravana precursora que, a 28 de outubro de 1977, criou nossa Academia. Todos, portanto, se tornam patronos eméritos da cadeira que ocuparam durante mais de quatro décadas. O jurista Paulo Bonavides, falecido a 30 de outubro de 2020, transferiu seu fulgor para a Cadeira nº 29, que tem como patrono o polímata Rui Barbosa. O jornalista, professor, escritor, crítico de cinema e enxadrista Miranda Leão, que nos deixou a 2 de abril do corrente ano, aportou seu talento ocupando a Cadeira nº 26, patroneada pelo grande estudioso da fala nordestina Mário Marroquím. Complementando o trio de perdas, vem Mário Barbosa, que partiu no último dia 11 de junho. Nosso bom Mário tomava assento na décima cadeira, cujo patrono, o mineiro Eduardo Carlos Pereira, teve sua Gramática Expositiva reeditada 153 vezes.

Ninguém encarnava melhor o status de Doutor do que Paulo Bonavides, apesar daquela simplicidade natural, tão própria dos verdadeiros gênios. Maior constitucionalista brasileiro, como cientista político, foi um social democrata e um incansável defensor da democracia. Aplaudido nas universidades de Colônia, Tennessee e Columbia, ao discutir Teoria do Estado e Ciência Política, enfatizava convicto as virtudes do constitucionalismo moderno, voltado para a melhoria das condições de vida do povo.

Miranda Leão era um apaixonado pelo cinema, pelo jornalismo, pelo estudo do Português e do Inglês. O fascínio pela Sétima Arte vinha desde o dia em que, na década de quarenta, na praia do Mucuripe, assistiu à gravação de “It’s all true”, de Orson Welles. Muito escreveu, muito publicou sobre os temas que povoam a grande tela e que, mundo afora, levam multidões às salas de cinema.

Mário Barbosa será lembrado pela finesse e pela riqueza interior, embora escondesse, zelosamente, os dotes intelectuais sob o véu da discrição, quiçá da timidez. Professor de Língua e Literatura Francesa, Português, Espanhol e Latim, era um colecionador de habilidades. Quem diria que, nos idos de 1955, lecionou Desenho de Máquinas e Eletrotécnica! Amante do Francês, apaixonado pela França de Balzac, Flaubert, Hugo, Stendhal, Baudelaire, Zola, Maupassant… Mário Barbosa parece ter-se abeberado nas mais límpidas fontes para cultivar aquela elegância e fidalguia, aquela nobreza de caráter que somente pode brotar de um grande coração.  

Amigas confreiras, amigos confrades, vivemos tempos de saudades. O mais angustiante é a sensação de que todas as nossas perdas foram irreparáveis. Quando se vai um Paulo, um Miranda, um Mário, temos todo o direito de externar inconformismo, aniquilamento, desesperança. Ainda bem que existe a Academia para perpetuar-lhes a memória. Ainda bem que estamos aqui, feito elos entrelaçados, assegurando a continuidade dessa corrente de memória cuja vocação é atravessar os séculos.

Para concluir, gostaria de evocar, nos três companheiros desaparecidos, o dom da simplicidade, que avulta em qualquer apuração que se faça de seus predicados. Entendo as academias como centros de atividades vivificadoras do pensamento e não como espaços para o desfile de egos na superficialidade dos salões. Muitos, efetivamente, se deixam encantar pela suposta glória acadêmica, olvidando o projeto da Academia viva, e atuante, e transformadora.

A propósito, a Academia Francesa, sempre exemplar, parece ter erigido um “alerta aos deslumbrados”, quando instalou, no lugar mais visível do salão de entrada, em sua sede, uma estátua do dramaturgo Molière, que jamais pertenceu àquela casa. No local, uma placa reluz com oportuna lição de humildade: “Nós não fazemos falta à sua glória. Mas ele faz falta à nossa”.