MARCELO BRAGA, membro efetivo da Academia Cearense da Língua Portuguesa – Cadeira nº 18
Aiocó estava em festa. As chuvas, nos últimos dias, trouxeram à cidade vida nova, além de muitos mosquitos que se viam aos arredores dos lampiões. Os moradores riam-se com o tempo. Havia quatro anos que a seca castigava, era só sofrimento, luto, desespero e desesperança.
O pequeno povoado já não existia, mas Deus existe e manda chuva. Chuva que caiu sobre Aiocó durante três dias, deixando a população frenética de alegria. Alguns, em frente à igreja, agradeciam a Deus, ajoelhados; outros, com uma garrafa de cachaça entre as mãos postas, olhavam para o céu e choravam compulsivamente.
As chuvas, segundo a população daquele pequeno povoado, vieram graças a Mané do Carpo, um curandeiro que fora assassinado pelo Capitão Antoniano Linhares por ter lhe negado um pedido. Diz-se que a filha do Capitão estava muito doente, então mandou chamar o curandeiro. Este recusou.
No dia seguinte, a moça faleceu. Inconformado, foi até a casa de Mané do Carpo, amarrou-o em seu cavalo e desceu ladeira abaixo arrastando o pobre curandeiro, amaldiçoando-o e culpando-o pela morte de sua filha.
Após cinco dias da morte do velho Mané, o Capitão sofreu um acidente, caiu de seu cavalo, bateu com a cabeça em uma pedra, tendo morte imediata. O povo do lugarejo atribuíra a sua morte como obra do curandeiro que viera para se vingar.
Aiocó dividia-se nas opiniões tentando justificar o motivo de tanta chuva assim tão repentinamente. Para a maioria dos aiocoenses, era também obra do curandeiro, que, penalizado e conhecedor do sofrimento de todo povo, lhe mandou chuva. Para os mais católicos, era obra divina e tentavam explicar como sendo o resultado de muitas promessas feitas no período de quatro anos e meio. Para os que se diziam estudados de fenômenos naturais, Liberato e Dagoberto, nenhuma das hipóteses era verdadeira. Segundo eles, nada mais era, senão um caso isolado.
As chuvas continuaram, os rios e açudes ficaram cheios, e ninguém conseguiu explicar o fenômeno. Os aiocoenses cuidaram de suas terras, plantaram e colheram. A cidade desenvolvera-se especialmente com a chegada diária de turistas, atraídos por uma possível aparição.
No quintal da casa de Mané do Carpo, apareceu uma flor diferente de todas existentes na região, que recebeu o nome “Flor do Carpo.”
Após as chuvas cessarem, no lugar em que a flor nascera, o curandeiro apareceu para Tinó, um amigo fiel, talvez o único. O boato espalhou-se. No início, a cidade desacreditara na história, mas novas aparições surgiram e outras pessoas afirmaram tê-lo visto naquele local. Foi motivo suficiente para atrair pessoas de várias partes e não só da região.
A casa de Mané do Carpo, ou melhor, o quintal de sua casa nunca mais fora o mesmo. Em vida, era vazio, pouco frequentado , um ou outro ia visitá-lo na tentativa de conseguir alguma cura para seus males. Salvo o fiel amigo Tinó. Este, sim, embora fosse falar-lhe de suas desilusões, considerava-o amigo. Após a sua morte, fora o único a colocar flores em seu túmulo. Depois de morto, gente, que nunca vira ou ouvira falar, visita-o, pede-lhe forças, faz-lhe versos, estatuetas, pequenos panfletos com oração que nunca fez e foto que não condiz com a sua fisionomia em vida.
A cidade crescia cada vez mais, já não era só um pequeno povoado, o dinheiro multiplicava-se deixando o prefeito folgazão, e a prefeitura, que sempre se encontrara desapercebida de recursos, engordava que era uma beleza. No período de eleições, os candidatos pediam votos em nome da “Flor do Carpo”. Prometiam mundos e fundos, inclusive ampliar o pequeno quintal, por não mais comportar tanta gente que ia ali para tocar a flor e conseguir uma graça. Vencia o mais burlador e prosador. O fato é que o atual prefeito cumpriu o dito e ampliou o quintal. Tudo isso, segundo ele, seria para o bem do povo e para a memória do curandeiro que tinha que se manter viva.
Em um certo dia de casa cheia. Desculpe-me por isso. Em um certo dia de quintal cheio, Mané do Carpo, já não mais aguentando tanta deificação, resolveu aparecer justamente no momento em que todos o aclamavam. Uma confusão generalizou-se, alguns gritavam “Aleluia! Aleluia!”; outros se ajoelhavam; uns desmaiavam. E dentre em pouco, todos, ao perceberem o que realmente estava acontecendo, correram. Mané do Carpo, sobre a flor, observava tudo calado. E, após alguns minutos, a paz reinou novamente no quintal vazio.
Aiocó voltou a ser o que era. O local da aparição tornou-se mal-assombrado, e turista nenhum nunca mais pôs os pés naquele lugar que, aos poucos, deixava de existir. Mas a “Flor do Carpo” resistia. Não crescia, não murchava, não morria. Resistia.