Ítalo Gurgel, membro titular da Academia Cearense da Língua Portuguesa, Cadeira 17
Instituição centenária, afeita aos rituais e paramentos, a Academia sempre alimentou o mito da imortalidade, atribuindo a seus membros esse dom divino. Quando Machado de Assis fundou a Academia Brasileira de Letras, em 1897, o lema adotado foi ad imortalitatem. Mera cópia, em tradução latina, do que o cardeal Richelieu mantou gravar, em 1635, no selo oficial da Academia Francesa: à l’immortalité.
Para o bem de todos, porém, a supracitada imortalidade bafeja apenas a instituição, não aqueles que nela tomam assento. Imortal não é o homem, mas sua obra. Morre o homem, fica a fama, como propunha o inesquecível Ataulfo Alves. Assim, cabe a nós cultuar a lembrança e reconhecer os méritos daqueles que se foram, compreendendo e acatando, ao mesmo tempo, o inevitável desfecho que aguarda todo ser humano. A Academia, neste caso, se presta como locus da reverência. Por sua solidez como instituição pétrea, isenta, que atravessa os tempos, e pela credibilidade que costuma amealhar, é nela que o pedestal da memória repousa com mais firmeza.
Daí se estabelecer, muito espontaneamente, nos chamados “sodalícios”, a prática da relembrança. Evocar a memória dos que nos precederam é tarefa que abraçamos com respeito e gratidão, por entendermos que é nesses momentos que se forjam os elos da verdadeira eternidade. A Academia, afinal, se constrói como uma grande corrente que enlaça virtudes, idiossincrasias, talentos reunidos naquilo que é talvez sua marca mais notável e que encontra sua síntese na palavra “convívio”.
Quero aqui, companheiras e companheiros, reforçar a têmpera de três elos dessa ditosa cadeia que compomos, reportando-me ao brilho que vieram agregar a esta casa, em vida e depois dela. Refiro-me a Paulo Bonavides, Luiz Geraldo de Miranda Leão e Mário Barbosa Cordeiro, três personalidades distintas, três nomes queridos e respeitados em nosso meio, que, no biênio de 2020 a 2021, nos fizeram provar, em tragos amargos, a experiência da orfandade intelectual.
Agradeço ao presidente Marcelo Braga a honra que me ofereceu de homenagear, em nome de todos, os três queridos confrades, no momento em que a Academia celebra mais um ano de sua história, ano difícil, em que se colocou à prova nossa força, nossa resiliência, nossa capacidade de sobreviver em meio a uma tragédia nacional e universal.
No espaço de tempo que se faz razoável em evento desta natureza, não haveria como traduzir, em profuso e profundo panegírico, as virtudes todas dos companheiros que partiram. Assim, peço que me aceitem parcimonioso em meus comentários, pois me impus o exercício da síntese, ainda que atento ao propósito de traduzir com fidelidade o nosso luto e saudade.
Todos eles integraram aquela caravana precursora que, a 28 de outubro de 1977, criou nossa Academia. Todos, portanto, se tornam patronos eméritos da cadeira que ocuparam durante mais de quatro décadas. O jurista Paulo Bonavides, falecido a 30 de outubro de 2020, transferiu seu fulgor para a Cadeira nº 29, que tem como patrono o polímata Rui Barbosa. O jornalista, professor, escritor, crítico de cinema e enxadrista Miranda Leão, que nos deixou a 2 de abril do corrente ano, aportou seu talento ocupando a Cadeira nº 26, patroneada pelo grande estudioso da fala nordestina Mário Marroquím. Complementando o trio de perdas, vem Mário Barbosa, que partiu no último dia 11 de junho. Nosso bom Mário tomava assento na décima cadeira, cujo patrono, o mineiro Eduardo Carlos Pereira, teve sua Gramática Expositiva reeditada 153 vezes.
Ninguém encarnava melhor o status de Doutor do que Paulo Bonavides, apesar daquela simplicidade natural, tão própria dos verdadeiros gênios. Maior constitucionalista brasileiro, como cientista político, foi um social democrata e um incansável defensor da democracia. Aplaudido nas universidades de Colônia, Tennessee e Columbia, ao discutir Teoria do Estado e Ciência Política, enfatizava convicto as virtudes do constitucionalismo moderno, voltado para a melhoria das condições de vida do povo.
Miranda Leão era um apaixonado pelo cinema, pelo jornalismo, pelo estudo do Português e do Inglês. O fascínio pela Sétima Arte vinha desde o dia em que, na década de quarenta, na praia do Mucuripe, assistiu à gravação de “It’s all true”, de Orson Welles. Muito escreveu, muito publicou sobre os temas que povoam a grande tela e que, mundo afora, levam multidões às salas de cinema.
Mário Barbosa será lembrado pela finesse e pela riqueza interior, embora escondesse, zelosamente, os dotes intelectuais sob o véu da discrição, quiçá da timidez. Professor de Língua e Literatura Francesa, Português, Espanhol e Latim, era um colecionador de habilidades. Quem diria que, nos idos de 1955, lecionou Desenho de Máquinas e Eletrotécnica! Amante do Francês, apaixonado pela França de Balzac, Flaubert, Hugo, Stendhal, Baudelaire, Zola, Maupassant… Mário Barbosa parece ter-se abeberado nas mais límpidas fontes para cultivar aquela elegância e fidalguia, aquela nobreza de caráter que somente pode brotar de um grande coração.
Amigas confreiras, amigos confrades, vivemos tempos de saudades. O mais angustiante é a sensação de que todas as nossas perdas foram irreparáveis. Quando se vai um Paulo, um Miranda, um Mário, temos todo o direito de externar inconformismo, aniquilamento, desesperança. Ainda bem que existe a Academia para perpetuar-lhes a memória. Ainda bem que estamos aqui, feito elos entrelaçados, assegurando a continuidade dessa corrente de memória cuja vocação é atravessar os séculos.
Para concluir, gostaria de evocar, nos três companheiros desaparecidos, o dom da simplicidade, que avulta em qualquer apuração que se faça de seus predicados. Entendo as academias como centros de atividades vivificadoras do pensamento e não como espaços para o desfile de egos na superficialidade dos salões. Muitos, efetivamente, se deixam encantar pela suposta glória acadêmica, olvidando o projeto da Academia viva, e atuante, e transformadora.
A propósito, a Academia Francesa, sempre exemplar, parece ter erigido um “alerta aos deslumbrados”, quando instalou, no lugar mais visível do salão de entrada, em sua sede, uma estátua do dramaturgo Molière, que jamais pertenceu àquela casa. No local, uma placa reluz com oportuna lição de humildade: “Nós não fazemos falta à sua glória. Mas ele faz falta à nossa”.