Meus ouvidos estão como as conchas sonoras: música perdida no meu pensamento, na espuma da vida, na areia das horas…
Cecilia Meirelles
Houve um tempo em que: mulheres, ausência, exclusão, invisibilidade, rejeição seriam sinônimos. Verdade! Somos tão cinzentas na história do mundo que se necessitou arrebentar as amarras do obscurantismo feminino e resgatar o valor da mulher como sujeito. As que marcaram presença permanecem na história como heroínas.
Contudo, não ouso reverberar como feminista, mas simplesmente como mulher. Reconheço historicamente o silenciado som feminino em tantas épocas, culturas e gerações. Ainda há, neste século, mulheres quase ou totalmente mudas e com os olhos espantados pela violência doméstica física e psicológica, por sua rejeição em diversos espaços sociais e públicos e pelo sequestro violento de sua palavra.
Aclaro que não é o meu propósito escrever sobre as mulheres guerreiras, destemidas que romperam o dique machista das civilizações, contudo arrisco anotar sobre meus sentimentos diante da tragédia histórica das mulheres. Registro minha solidariedade; repudio os silêncios que emudeceram nossos gritos, os vazios que invadiram nossas almas, as pedras que nos feriram e a lama que atolou nossos em pés em tantas jornadas. Registro ainda a luz que iluminou o caminho de grandes mulheres que transformaram o mundo. Quantas? Nem sei. Mas tenho um coração agradecido às que fizeram a diferença.
Quando nasci um anjo esbelto, desses que tocam trombeta, anunciou: vai carregar bandeira (…) vai ser coxo na vida é maldição para homem. Mulher é desdobrável. Eu sou. Adélia Prado
Assim, reverencio as poetas das belas e imortais obras, as poetas anônimas e as que continuam vestindo o mundo com as palavras da paixão, de amor, dor, tristeza, felicidade criados em versos exuberantes, em letras trasmudadas em vagas calmas e revoltas de sensações e sentimentos, no encanto da poesia!
Escrevo, então, sobre minha relação com a poesia. O que significa e qual o sentido de versejar com tanto amor? Escolhi Cecilia Meirelles que consegue expressar meu sentimento:
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Eu abjuro qualquer possibilidade que me impeça de escrever, pois sei que, se não o fizesse, morreria ou então padeceria da dor anônima e aguda dos ignorados. Tenho a escrita como a minha imagem refletida no espelho da vida. Às vezes embaçada, outras vezes, cristalina. Já disse que encaro a inspiração, o fazimento de versos e a ressignificação das palavras como minha vida em três dimensões: sentimento, espiritualidade e amor.
Tenho sentimentos de gratidão pelas canções primorosas dos antigos poetas, dos trovadores dos versos líricos. Arrebato minha alma pela liberdade de anotar o que experimento, numa linguagem transmudada de beleza. Penso no que disse Amélia Prado: “Todo poema é um diálogo com o divino”. Verdade, o poeta perscruta o cotidiano e vê para além do aparente. Relação de transcendência.
Como mulher e poeta, desenvolvo meus versos instigados pelos mistérios inescrutáveis, pela experiência cotidiana, pelos devaneios e imaginação. Desenho símbolos e faço renda com versos nas noites glaciais de meus sonhos. E tem mais, nas minhas idas e vindas deleitosas, tricotando fios de beleza, sedimento minha identidade feminina de poeta. Observo luas e pedras que às vezes nada me dizem e adentro cavernas que me revelam um conteúdo subjetivo, abissal. É uma relação de amor, de ligação, de descoberta de paixão.
Alguém poderia assinalar… Quem se interessa em saber da sua relação com a poesia? Responderia que não sei. Mas entendo que o essencial é expressar a intimidade com o belo quando estou a entoar canções poéticas. Nesses cânticos, reitero a bondade, a beleza, o amor e, quem sabe, talvez eu ouça a melodia dos anjos.
Há dias em que não me atrevo a pegar uma caneta, abrir um caderno de notas no celular, ligar o computador. Nesses dias, estou oca, cavernosa e sombria. No entanto, há ocasiões em que as águas claras correm em minha mente como um rio em direção ao mar. Então crio, versejo e me ilumino. É belo amar a poesia! O lirismo do poeta traz em sua essência toda manifestação das musas através da bondade e das virtudes eternas. Ao criar, o meu Eu lírico me aproxima da redenção espiritual. Sinto-me parte do universo sem limites.
Alguns me falam: – Você deveria escrever romances, contos, crônicas… Poesia?! Ninguém lê. A pessoa que assim se expressa desperta-me compaixão, pois certamente não conhece o som melodioso do poema, o ritmo das palavras transformadas em sentimento, a emoção orvalhada nos versos e o sentido da inspiração divina! E os pássaros que volteiam em nossa imaginação? É uma exultante sensação, é uma enxurrada de anseios, arrojos e sentimentos incríveis, inefáveis. O poeta conhece a fragrância suave do amor ao elevar seus versos aos céus, bem como o abrasado chão das sombras e escuridão.
Ser poeta me identifica com Florbela Espanca
Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!
É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!
É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim…
É condensar o mundo num só grito!
E é amar-te, assim, perdidamente…
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!
Então, as noites de luar clareiam minha mente, os entardeceres repousam minha alma, as madrugadas partem nos orvalhos das rosas molhadas pelas finas gotas da boca do céu. A poesia mora em mim, vem de dentro para fora e se exterioriza em sentimentos, emoções, sensações, sons afinados de amor.
Sou mulher, sou poeta, sou antiga, sou gente! Querem mais?
Regina Barros Leal.