“Em cada coração há uma janela para outros corações”. (Rumi)
Na vila dos Corações Feridos, Márcia recebeu um telefonema de sua amiga Mônica e, depois de conversarem por horas, resolveu escrever-lhe uma cartinha. O rapaz do correio não a entregou, porém, no endereço indicado. Na casa de Rita, uma moça desesperançada que vivia pelos cantos, deprimida, Hilda, sua mãe, já tinha perdido a fé de vê-la feliz. Naquela tarde, no entanto, havia algo novo: sentada na varanda, estupefata, Rita abriu o envelope curiosa e começou a ler uma carta.
Amiga Mônica, abre tuas janelas… São muitas!
A esperança nos remete ao devir. Aquele que deixa sua alma fluir e vislumbra o amanhã, percorre um trajeto instigante. Entretanto só o presente existe no tempo do agora. É o Ser sendo. Lembre-se do que é viver. Existência provisória e essência eterna. Finito e infinito no instante. O fogo divino (a autora).
Ouvi atentamente o que disseste das tuas amarguras e indisciplina, de uma ausência de ideações, de um repleto vazio e de cortinas cerradas. A sombra assentava em teu ambiente. Teu telefone pranteava.
Cara amiga, olha pela janela do quarto, observa a noite chegando e o dia nascendo, as idas e vindas da natureza, a harmonia! Ambos, dia e noite, entrelaçam-se na mágica do tempo, no ciclo da vida.
Sabe, uma vez abri as janelas do passado e avistei muitas lembranças, tanto boas quanto tristes. Fechei-as depois. Então, fiquei a pensar quais janelas queria abrir, mas percebi o engano, a ilusão. Eu queria mesmo era abrir as janelas da casa na praia e olhar o mar, os coqueiros. Eu amava escutar a melodia dos ventos e o rumor das ondas derramando-se em choro prateado.
Tem mais, minha amiga: onde moras, no casarão do sítio, as janelas de madeira envelhecida, quando abertas, de um lado, mostram um belo pomar; de outro, a horta da tua tia Vânia. Das de trás, vês o quintal cheio de jarros de plantas medicinais e as galinhas carcarejando. Tens a vista da planície verdejante e da pedra do Velho Tonho, em que ele dormitava e comia milho verde. Lembras-te? Ele ainda mora por aí? Dá notícias!
Porém alcançar o novo, o inusitado, a mudança; deixar-se surpreender exige que te abras às possibilidades e te convertas em conchas plasmando-te no inteligível. Se queres tocar tua alma, tenta… insiste…retira os entulhos do caminho, a areia dos olhos. Quem sabe não poderás ver a face do mistério, outras realidades, as imateriais subjacentes ao cosmo, que transcendem o mundo concreto, penetram na essência do nosso Ser?! São as que abrem para dentro, deixando a luz interior aclarar os cantos e recantos, onde o coração dança e repousa. São reveladoras!
Ao abrir essas janelas, tenta escutar a ti mesma, aos teus silêncios, à tua voz interior, aos teus sons ocultos. Já dizia Cecília, “Faze silêncio no teu corpo. E escuta-te. Há urna verdade silenciosa dentro de ti. A verdade sem palavras”. Busca, pois, penetrar na fresta da janela, onde a lucidez margeia a alma plena do amor, conjugando o verbo esperançar.
Não estás só! Somos vários e somos UM. Sente o calor da humanidade, a metafísica do poema mítico, a sinfonia da natureza, consolidados nas ideias sublimes. Elas nos elevam e acendem as estrelas no cosmo inefável.
Olha ainda para além das janelas, num percurso aos céus, e conseguirás, com tua vontade, enxergar um caminho de fulgor extasiante. Podes tentar! Quem sabe?! Cruz e Sousa, em sua poesia, expressa que “A dor transcendentaliza”.
Amiga! Tua consciência se firma no entendimento de ti. O todo está em nós. Busca a sabedoria com inteira gratidão em todas as coisas!
Eu fiz um percurso assim, e é inexplicável!
Eu estou aqui, à espera da tua palavra! Liga se puderes.
Beijos.
Márcia
Terminada a leitura, o riso alarga-se no rosto de Rita. Conhecidas as duas mulheres, seu corpo eleva-se, e, olhando para sua casa, observa o quanto é um cinza, um “cinza das horas”! Então abre as janelas, deixando a luz entrar.
Nesse mágico instante, da varanda, a moça percebe, na vila de casas, grades nas janelas, olhos embaçados de velhinhas sentadas em cadeiras de pequenos terraços. O açude se rompe, os olhos se encharcam na barca-vida, na consciência do eu! E ela abarca a vida, dá-se conta do belo, da musicalidade dos ventos cantantes no fim da tarde.
Respira e mantém a calma!
Pega o telefone.